domingo, 27 de fevereiro de 2011

Mais do mínimo

Demorei, mas achei. Agi com certa cautela ao escrever o último post, haja vista que ciente da chamada “delegação disfarçada”, contudo há muito tempo sem lidar com o tema me faltaram alguns fundamentos, agora já supridos. Abaixo calha à fiveleta um trecho do livro “Curso de Direito Administrativo”, de Celso Antônio Bandeira de Mello, Malheiros Editores, 25 º edição, 2008. Volto depois.

“Considera-se que há delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora do procedimento regular, toda vez que a lei remete ao Executivo a criação das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a restrição à liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento do direito material ou ao nascimento da obrigação, dever ou restrição. Ocorre, mais evidentemente, quando a lei faculta ao regulamento determinar obrigações, deveres, limitações ou restrições que já não estejam previamente definidos e estabelecidos na própria lei. Em suma: quando se faculta ao regulamento inovar inicialmente na ordem jurídica. E inovar quer dizer introduzir algo cuja preexistência não se pode conclusivamente deduzir da lei regulamentada.
[...]
[art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias]. É o seguinte o seu teor: “Ficam revogados, a partir de 180 dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I – ação normativa; II – alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie”.
[...]
O próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores”.

Celso Antônio Bandeira de Mello é considerado por muitos o maior administrativista do Brasil. Inegavelmente é o mais influente. Muitas de suas teses são adotadas pelos tribunais brasileiros. É o meu livro de cabeceira: sem capa, lascado e despencando. Já peguei muitas chuvas com ele por aí. O conteúdo é fantástico.

Na votação do salário mínimo o ponto retro exposto é o que seria o principal da discussão. É uma questão de ordem constitucional que, enquanto não analisada, prejudica todo o resto. Não que a inconstitucionalidade do preceptivo legal não tenha sido colocada em debate, mas não foi o ponto nodal, ficando apenas à margem dos interesses governistas. É o que eu digo e repito: para este governo, e isso inclui a gestão passada, o que é a ordem legal perante a grandeza do partido?

Hoje o Brasil funciona para atender interesses espúrios, o poder pelo poder, de uma forma nunca vista, fazendo-se transparente mediante a subversão de valores e instituições, demonstrando uma falsa política de alteração do quadro social. Por vezes eu vejo nossos nobres agentes políticos tentando se passar por Rambo: com a faixa na cabeça, com a faca nos dentes, lutando pelo povo; ou Macgayver, que com um palito de fósforo e um barbante consegue livrar o Brasil das mais graves crises econômicas. O povo gosta disso, e o atual governo faz: chutar a estrutura político-administrativa do país em nome da educação, saúde e do lazer. Não importa como se deve fazer; não importa se existe um caminho a seguir. O que importa é demonstrar “raça” e fazer acontecer. E aí, juventude, é onde a teratologia toma conta do universo. O interesse pessoal sobrepuja o bem comum, pois as coisas acontecem no escurinho do quarto, na calada da noite, pelas costas, no momento em que acaba o horário de verão. Tudo ensaiado para se mostrar da forma mais transparente possível – e que sai com uma grosseria que faz sentir saudades do Brasil colonial. Mas e daí? Tenho o cartão magnético do bolsa família, posso ir a um banco e usar um terminal eletrônico, ser visto como gente por alguns minutos a cada mês.

Infelizmente, no show de horrores que foi a sessão plenária para a votação do piso salarial, a base governista fez questão de falar somente das questões materiais – como se não estivessem na Casa brasileira de Leis por excelência; como se o papo não fosse com eles; como se a questão devesse ser remetida ao STF para sanar o imbróglio. A verdade é que aos eleitos do Congresso Nacional, além de faltarem com a devida vergonha na cara, faltam também com a competência e com o conhecimento técnico sobre os mais variados temas. Ressalvas à parte. Um Legislativo em uma ridícula relação de subordinação com o Executivo, que é hoje é regido por corporativismos, coleguismos, entreguismos, ocultimos e bruxarias, acaba seguindo a mesma linha: a camaradagem solapa o interesse público, e como em uma revoada, todos vão a uma mesma direção, mas não por instinto.

Até mais!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O aumento do mínimo

Após um longo e tenebroso inverno volto ao blog, mesmo que pontualmente. O motivo: a votação do Projeto de Lei da Câmara nº. 01/2011, que dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua valorização de longo prazo. Como jurista que sou e dispondo desta ferramenta, manifesto o meu repúdio ao que aconteceu na sessão plenária do Senado Federal de 23/02/2011 – reflexamente à discussão na Câmara dos Deputados.

Em primeiro lugar, e, a meu ver, de menor importância, destaco o seguinte: a política de reajustes (em sentido amplo) do salário mínimo, prevista para o intervalo compreendido entre os anos de 2012 e 2015, é de longo prazo? A mim não parece ser adequada a classificação. Contudo, expressões desse tipo reverberam em forma de mágica quando ventiladas pela imprensa: “nossa, valorização a longo prazo para o salário mínimo?”; daqui a 10 anos, se algo não mudar, um petista discursará no Senado Federal, usando um palavrório vazio e retumbante, fazendo referência a que “nunca na história do país”, até a ascensão do seu partido à Presidência da República, houve uma política de longo prazo para o salário mínimo e que a primeira a sancionar o projeto de lei aprovado nas Casas de Leis foi a primeira presidenta brasileira, promovendo uma era de quebra de paradigmas. Exaltará o pai Lula. Batata.

A definição do valor do salário mínimo poderia ser o ponto principal da discussão. PODERIA, isto é, perdeu-se uma boa chance. Ocorre que o art. 3º determina que o salário mínimo sofrerá aumento e reajuste por Decreto pelo Poder Executivo – e esse é o maior atentado que o PLC nº. 01/2011 comete, a meu ver, sendo este o ponto de enfoque deste post.

A cizânia é a seguinte: o salário mínimo deve ser fixado por lei – é a previsão do art. 7º, IV, da Constituição Federal. Decreto não é espécie de lei. Fica claro que a Constituição Federal faz uma reserva legal, isto é, o salário mínimo deverá ser fixado por lei. Ponto. Até o Tiririca sabe disso. Melhor: em uma conversa entre o Romário e o Tiririca eles nem discutiriam esse assunto, pois nesse aspecto ambos tiraram 10 nas aulinhas que antecederam os respectivos mandatos.

Acompanhei por TV a sessão no Senado. Não vi qualquer senador fazer uma diferenciação, o que seria demais esperar, entre aumento e reajuste. O reajuste é mera correção, geralmente baseada em um índice, que se faz sobre determinado montante, no caso o salário mínimo, de modo a preservar o seu valor em razão de fatores externos, como a inflação, por exemplo – o seu valor inicial, por assim dizer, será mantido se regularmente reajustado, não incidindo desvalorização. O aumento, explicado o que é reajuste, é fácil de entender: não trata de preservar o valor de um montante, sendo mais que isso, ou seja, acrescentar-lhe valor, tornar o montante inicial maior, majorar a sua capacidade, de revisá-lo. A lei, ou o projeto de lei, não devem ter palavras sem utilidade ou repetitivas sem algum motivo determinante. Aumento e reajuste, sob o prisma do Direito, são expressões diferentes.

Entendo, neste caso, que aumentar o salário mínimo significa fixar novo salário mínimo. O debate quanto ao reajuste comporta argumentos de todos os lados, haja vista que a CF o permite no art. 7º, IV, mas não estabelece a espécie normativa que promoverá a atualização do instituto – se Decreto, Lei, et cetera -, tampouco o legitimado, ao menos de forma clara. Trataria de se discutir se a reserva legal é absoluta ou relativa, dentre outras nuances, o que demandaria maior tempo dedicado a este texto.

Portanto, o caso de aumento do salário mínimo, entendido como fixar novo salário mínimo, mediante Decreto do Chefe do Poder Executivo, mostra-se uma situação de ilegalidade. Parece-me, portanto, que carregada de inconstitucionalidade o PLC nº. 01/2011, uma vez que o seu texto contraria o que é estabelecido pela Carta Maior.

Deve ser observado que é essencial na separação de poderes evitar a excessiva delegação do Legislativo ao Executivo. Na situação tratada essa delegação poderia ter sido poupada – afinal, o aumento do salário mínimo é regularmente votado nas Casas de Leis. O que está por debaixo dos panos, ao que parece, é que com a farra dos gastos públicos no ano de 2010 (recentemente cortados 50 bi do orçamento de 2011), aliada a fatores econômico-financeiros globais, o governo está a fazer malabarismos para manter o equilíbrio da economia brasileira – o recente aumento dos juros, por exemplo. Ademais, diante de um cenário em que alguns especialistas apostam no crescimento da inflação (fenômeno da desvalorização da moeda), o governo ter em suas mãos uma ferramenta de reajuste do salário mínimo interessa muito mais. Não se sujeitará ao lento e longo trâmite das Casas Legislativas, de modo que com uma canetada a presidenta poderá atualizar o salário mínimo.

Assim, um reajuste de salário mínimo poderá ser recebido com festa, mediante a atuação da máquina de marketing governamental, mesmo não caracterizando um aumento real no seu poder de compra, e sim uma medida para evitar a sua desvalorização. Ponto para o governo.

Espera-se, agora, que o STF seja provocado para se manifestar acerca da constitucionalidade do PLC nº. 01/2011, que será convertido em lei em breve. Saberemos, então, acerca da possibilidade de reajuste do salário mínimo por Decreto, assim como do entendimento da Suprema Corte sobre o aumento no valor do instituto por ato administrativo unilateral do Chefe do Poder Executivo.

Por fim, é sofrível consolidar a posição de que foi colocada coleira no Legislativo pelo Executivo. Os discursos da base governista, em geral, fugiram da exposição de motivos da legalidade do PLC. Muita exaltação ao governo Lula e à atual Presidente; ferro comendo para dentro de Fernando Henrique; balelas acerca do crescimento do salário mínimo em dólar – fica aí um complexo terceiro mundista, anacronicamente indexando valores nacionais à moeda estrangeira –; Sarney desrespeitando o regimento interno do Senado; senadores servindo de massa de manobra – vergonhoso. Salva o lúcido discurso do senador Pedro Taques (PDT-MT).

Em que pese entendimento em contrário, fico por aqui.

Até mais!